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‘Tudo que sou devo ao menino gordo, preto, pobre e loser que fui’, diz humorista Paulo Viera

Confirmado no Big Terapia do BBB 23 e rodando nova temporada do 'Avisa lá que eu vou', ator diz que busca criar referências positivas para que pessoas como ele não sejam ridicularizadas e fala da dificuldade em lidar com haters: 'Ainda estou transformando meu coração num CNPJ'

Nem fama, nem dinheiro. O que desejo que conduziu Paulo Vieira rumo à carreira artística foi outro: ser amado. O estrago causado pelo bullying na infância e a frágil realidade emocional e financeira da família abriram buraco profundo dentro dele. Dores que até hoje — mesmo após cativar o público e se tornar a grande estrela do humor atual no país — pena para superar.

— É do que mais tenho tratado na terapia: reconhecer esse garoto que fui, tirá-lo da escuridão e trazê-lo para 2022. Tudo que sou e criei devo a esse menino gordo, preto, pobre e looser que fui. Com seus traumas, família cagada e que resolveu observar e escrever sobre isso — elabora Paulo, narrando o processo que tem funcionado como cura. — Quando estou falando de uma história que vivi, não deixo de estar reinventando ela, né?

Paulo Vieira: 'Eu e Fábio Porchat fazemos um humor de tia. A nossa voz na comédia é feminina' — Foto: Divulgação / GLIN+MIRA

Paulo Vieira: ‘Eu e Fábio Porchat fazemos um humor de tia. A nossa voz na comédia é feminina’ — Foto: Divulgação / GLIN+MIRA

Se sofreu com uma “criação violenta” num contexto em que criança “não era, necessariamente, gente”, agora, Paulo inverte a narrativa e dá voz àquele garoto. O coloca à frente até de decisões. Como a que tomou durante a gravação de seu programa “Avisa lá que eu vou” — que estreia a segunda temporada em 2023, no GNT, com versão editada no “Fantástico”.

Após dias sem folga na cidade de Piranhas, resolveu que a equipe pararia mesmo ainda com trabalho por fazer. Nada era mais importante do que “ser feliz”. E assim foi. Dentro do barco que Paulo alugou, “cheio de comida”, curtiram um passeio pelo Rio São Francisco que costurou um forte laço de união. Pode não ter sido uma escolha madura, reconhece Paulo, mas agradou o seu “mais profundo eu” (“veio do lugar onde habita minha criatividade, e ele é mais humano do que burocrata”).

Vivência profunda

Em busca das próprias raízes ele segue toda vez que embarca para o interior do país com o “Avisa lá que eu vou”. A meta do goiano, radicado em Tocantins, que furou a bolha sudestina, é mostrar o Brasil profundo de onde ele saiu para os brasileiros.

— O programa nasceu quando a narrativa que dominava o país era de que o Brasil não valia a pena, que estávamos ferrados e que só elegíamos péssimas pessoas. Nossa intenção era dizer: “O Brasil vale a pena, sim, e o Brasil que vale a pena é esse aqui, ó”. Existe um país que não está na primeira página e que precisa ser procurado pelo audiovisual.

Paulo sabia, desde o início, que queria falar, sobretudo, de gente comum, de realidades que as redes sociais não alcançam.

— Pensei se estava sendo naïf , bobo ou prepotente. Mas, não. A própria equipe tem encontros espirituais fazendo o programa. São pessoas que nunca pararam para pensar sobre o analfabetismo. Precisamos gravar alguns dos nossos entrevistados autorizando o uso da imagem porque eles não sabem escrever. Entramos em casas, comemos a comida das pessoas, usamos o banheiro. É uma vivência profunda. E ainda tem ainda essa vontade de tentar fazer algo artesanal na televisão aberta…

Paulo já coleciona histórias que aconteceram nas gravações da segunda temporada. Como a entrevista com um “fantasma” racista, sobre a qual ele conta no vídeo a seguir (detalhe: o fantasma dá o ar da graça…)

‘Será que fui longe demais?’

 

Tudo que mostra na tela conversa com o tipo de humor feito por Paulo. A base — além do cinismo — é a consciência social que forja sua personalidade. Alguém que teve uma crise ética ao apresentar um reality show de gastronomia (“Rolling Kitchen Brasil”) enquanto a fome voltava a explodir no país.

O desconforto acabou resultando na doação de R$ 10 mil a instituições de combate à fome a cada episódio. O humorista também procurou se convencer da importância do entretenimento puro e simples. Enxergar que muito da grandiosidade do artista também está em saber a hora de cutucar a ferida e a de apenas fazer cócegas.

Aí, então, ele brilhou à frente do programa. Falava de comida a partir da experiência de quem aprendeu a pilotar o fogão aos 9 anos, quando precisou assumir a cozinha de casa. Os pais saíam para trabalhar e a responsabilidade de alimentar o irmão era dele.

Essas lembranças vão ganhando novos contornos dentro da atual realidade abastada de Paulo, que precisou virar a chave para enxergar seu próprio valor.

— Quando sonhava ser um Global, pensava sobre o que precisaria me tornar ou esconder de mim. Demorou até eu entender que chegaria lá para chamar a Globo a se aproximar de mim de novo. Minha chegada foi para dizer: “Vamos ali comigo, mostrar outras coisas” — acredita. — Sempre fui ligado à cultura popular, à política cultural, produzi festivais no Tocantins. Penso que cheguei no momento certo, falando sobre brasilidade, em que a emissora entende a necessidade de descentralizar.

Não só entende como parece ter dado carta branca para Paulo brincar. Ele zoa o “Domingão”, o “Criança Esperança”, o BBB… Aliás, o humorista está confirmado com o Big Terapia no BBB 23.

— Não sei se me deram carta branca ou eu me dei, só sei que fui indo. Sempre falei o que gostaria de fazer. Eles foram topando. A liberdade dada, tipo “seja livre”, é algo difícil na minha história e na da minha família. Então, é uma liberdade conquistada. Um caminho que Tatá Werneck, Fábio Porchat, Marcelo Adnet também trilharam — lembra. — Eu já cheguei me apropriando dele e não fiz negociações. Mas não é tipo “solta esse doido para falar o que quiser”. Há uma confiança.

Paulo diz saber até onde ir. Quando passa dos limites, analisa, é sempre “dentro dos 15 minutos de tolerância de um limite aceitável”.

— Humor também é errar. Vez ou outra, penso: “Será que fui longe demais?”. As piadas que quero fazer passo pelo filtro três vezes. As que arrisco, são as importantes de serem feitas, com críticas que mostram meu ponto de vista sobre algo — compara. — Me perguntam se sofro assédio de outras emissoras. Respondo que só a Globo me comporta, só ela suportaria um funcionário como eu e o que represento. Não só por ser preto, gordo e protagonista, perfil que a gente não vê em outras TVs, mas pelos cutucões que dou. Já estaria na rua em qualquer outra emissora.

‘Ainda estou transformando meu coração num CNPJ’

 

Paulo Vieira: 'As piadas que quero fazer passo pelo filtro três vezes. As que arrisco são as importantes de serem feitas, com críticas que mostram meu ponto de vista' — Foto: Divulgação / GLIN+MIRA

Paulo Vieira: ‘As piadas que quero fazer passo pelo filtro três vezes. As que arrisco são as importantes de serem feitas, com críticas que mostram meu ponto de vista’ — Foto: Divulgação / GLIN+MIRA

Responsável por revelar Paulo ao mundo em seu extinto programa na Record, Fábio Porchat o define assim:

— Paulo Vieira é a tempestade perfeita para o humor. É engraçado, ousado, escroto, inteligente e tem o tempo perfeito. Essa junção de tudo faz ele ser o grande nome do humor hoje.

Os dois têm em comum “o humor de tia”, como define Paulo. Uma voz feminina na comédia, que surge do fato de acharem as mães engraçadas e de terem sido criados com avós, tias… Vem daí, na opinião do humorista, o motivo de acharem que ele é gay. Ele, que namora a especialista em mídia, influencer e atriz Ilana Salles há seis anos, está longe de se incomodar com isso. No entanto, acha um retrocesso ter que dizer “o que é e o que não é”.

— É um desserviço baseado em estereótipos.

Romper padrões é com ele mesmo. Assim que conquistou posição importante no mercado publicitário e virou garoto propaganda de várias marcas.

—Teve um momento de ser cota e estar na moda, sim, mas fui virando protagonista de segmentos que nunca toparam fazer propaganda com gordo, como a área de comida, por exemplo — avalia a estrela de campanhas de uma rede de pizzarias.

É uma posição poderosa na qual ele procura estar sempre atento.

— Me produzo, me visto bem para ser referência para quem se parece comigo. Busco nunca ridicularizar minha imagem porque ela serve de inspiração. Nada me deixa mais feliz do que um menino ou menina preta e gorda dizer que é meu fã. Um dos meus trabalhos é criar boas referências para que pessoas como eu, pelo menos, não sejam ridicularizadas na escola.

Tem dias, no entanto, que Paulo não sustenta essa autoestima toda. Lembra mais aquele menino lá da infância. Acorda se achando “um monstro”.

— Posso estar bem na TV, mas me odiando por dentro. Passamos muito tempo deixando as pessoas falarem coisas sobre a gente, assimilando e até reproduzindo esse discurso. A sociedade nos ensina a odiar nosso corpo. E, ao marginalizar um corpo, invalida-se uma existência. Pessoas caem em depressão porque não são validadas. Ninguém merece ser invalidado, mas enaltecido e respeitado.

Na hora da baixa autoestima, haters podem fazer um estrago. Paulo ainda est que tem dificuldade em lidar com isso.

— Ainda estou transformando o meu coração num CNPJ. Nunca nunca fiz arte para ser uma pessoa pública, mas para ser amado. Esse lugar em que você não deixa de ser humano para ser uma empresa… As pessoas falam se gostam da Anitta, da Ludmilla ou do Luciano Huck como se falassem de uma cadeira. Isso exige certa frieza. Estou entendendo esse lugar e também se eu quero isso — questiona. — Prezo a espontaneidade. Gosto de fazer comunicação reta, sem rodeio ou a arrogância tipo “estou falando de um certo lugar onde você não está”. Isso passa por me mostrar frágil. Mas pessoas se aproveitam disso para piorar tudo.

Por ora, ele segue o fluxo. Para o próximo ano, escreveu novo programa, ainda sem data prevista para a estreia. “Pablo e Luisão” é inspirado nas histórias reais de seu pai e do melhor amigo, que estão sempre criando empresas que falem no dia seguinte.

Paulo fechou com a Paris Filmes um longa por ano. A ideia é ajudar no processo de retomada do cinema nacional. O primeiro filme se passará no Nordeste, será de zumbi e protagonizado pela família que Paulo interpretava no quadro “Isso é muito a minha vida”, no programa “Se joga”.

Há ainda livros infantis prontos para serem lançados e um disco com composições próprias. Música é a arte que Paulo mais gosta de produzir. Conta que começou a fazer comédia para ganhar dinheiro e, aí, lançar suas canções. Mas à medida em que foi fazendo sucesso, se sentiu “covarde, com medo das críticas”.

— Digo que vou ser comediante até os 35 anos, depois, fazer música… Mas estou estudando uma pedalada de dois anos por causa da pandemia — conta ele, que chegou a lançar um EP.

Um show concreto é o da posse do presidente eleito, que Paulo vai apresentar. Ele é amigo de Lula. Mais ainda de Janja.

— Ela tem Whatsapp, Lula, não. A gente manda mensagem pra ele e são sete pessoas pra ler e avisá-lo. Bem tio mesmo.

Mas… dá ser amigo e cobrar?

— Não só dá, como a melhor maneira de cobrar é estando perto. Existe essa marginalização da política para o povo preto e pobre. Não é à toa. As mesmas pessoas que dizem que política não presta são as que fazem de tudo para manter relação com poderosos — afirma. — Minha experiência me fez entender que dá para fazer muita coisa pelo país quando se conhece senadores, deputados. Tiveram muitas pautas importantes para a cultura e os trabalhadores pelas quais liguei pessoalmente para políticos do Tocantins pedindo que votassem. É um caminho que a gente é ensinado a não fazer porque a intenção dos ricos é que só eles dominem esse tipo de contato.

Do novo governo, o ator tem altas expectativas.

—O governo Bolsonaro foi caótico e prejudicial psicologicamente, exaustivo. O jornal virou um grande obituário de coisas do país que estavam morrendo: direitos, ministérios, instituições, pessoas. Todo dia tinha que ir para a internet fazer mobilização. Espero poder respirar, cuidar um pouco da minha vida. E também que Lula faça de novo uma revolução. Na educação, na cultura, que devolva a esperança para esse país, porque é desesperador ver a falta de perspectiva das pessoas.

Fonte: O Globo

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