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Vivi para contar: ‘Já comemos comida vencida há um mês. Deus não deixa que a gente passe mal’

Fotografado revirando caminhão de lixo, pintor e eletricista desempregado diz que somente o neto, um bebê de 1 ano e 8 meses, não se alimenta com produto fora da validade

Ivanir Silva Moraes Junior* 

O Globo/Rio de Janeiro – Fiquei sabendo por um vizinho que um caminhão passava de segunda a sábado, por volta das 9h, para buscar o que já tinha passado da validade em um supermercado aqui na Lapa. Tem dias que são 15 a 20 pessoas revirando o lixo em busca de comida. Sabe o que é isso? Necessidade. A gente já se conhece.

Só umas duas ou três pessoas moram na rua. Os outros todos têm casa, mas pegam as coisas do caminhão porque estão desempregados e precisam levar comida para dentro de casa. Tem uma senhora que vem com os netos, uma “escadinha”, várias crianças.

Lá em casa somos dez pessoas. Estava vivendo debaixo do Viaduto Paulo de Frontin com minha família toda, mas apareceu uma vaga numa ocupação aqui no Centro e fomos para lá. Moramos eu, minha esposa, a Zuleica, meu sogro e meus dois cunhados, uma tia minha e meus três filhos: a Juliana, de 16 anos, o Luanderson, de 10, e a Raquel, de 17, além do filho dela, meu netinho, o Flávio, que tem 1 ano e 8 meses.

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Pegamos de tudo no caminhão. Linguiça, carne, feijão, arroz, iogurte… Tudo que você puder imaginar eles jogam no lixo. Os produtos estão sempre fora da validade. Eu e meus filhos já comemos comida que estava há um mês vencida. Mas Deus olha lá de cima e não deixa que a gente passe mal. Se fosse uma pessoa com dinheiro comendo um negócio desses…

‘Fico sem, mas eles não’

Hoje (terça-feira, dia 09 de agosto) eu peguei 5 kg de arroz, dois pacotes de açúcar, 400g de pó de café, linguiça calabresa e ovo de codorna. Fizemos aquele banquete em casa, foi uma alegria. Nunca conseguimos comer do bom e do melhor, estamos agora por conta desse caminhão aí. As compras estão muito caras. Vai ver quanto está o litro do leite? Para a gente que é pobre, não tem como.

O avanço da pandemia acentuou a pobreza nas favelas e periferias. As pessoas perderam empregos e falta comida no prato/Agência O Globo

Já falaram em proibir de a gente pegar, mas tem funcionário que é tão humano que deixa porque sabe que a gente está passando necessidade. Se não fossem essas pessoas… Essa ajuda não quebra um galho, quebra uma árvore. Se não fosse isso aqui, a gente não estava passando nem necessidade, estava passando fome mesmo. Se um dia isso acabar, vai ter um montão de gente passando fome.

Teve uma senhora que veio com o filho, o neto e o sobrinho. Uma história parecida com a minha. Quando o caminhão chegou, ela começou a chorar. “Moço, estou chorando de emoção porque vou ter o que dar de comer para minha família. Quanto tempo que eu não comia uma carne, uma linguiça, um arroz e um feijão, só estávamos comendo angu”, ela me disse.

Desde que descobri isso aqui, agradeço muito a Deus e peço que ele nunca impeça que a gente tenha isso aqui enquanto a gente não consegue um emprego.

Lá em casa nós somos como uma equipe. À noite, saímos juntos com uma carrocinha para catar latinha. Mas mesmo assim não dá, porque a família é muito grande. Meu caçula vende bala e jujuba no sinal. Não me dá trabalho nenhum, está estudando, só me dá alegria. Ele fala para mim: “pai, vou estudar bastante para ajudar o senhor, meu avô e nossa família toda”. O desejo dele é ser doutor.

Eu fico sem, mas eles não. A gente faz tudo pelos mais novos. Minha mais velha engravidou, mas o rapaz não assumiu. Sumiu, na verdade. Mas não deixo nada faltar para o meu neto. Amo ele demais da conta! Ele não come nada fora da validade, porque ele é um bebê, então às vezes eu fico sem, mas para ele não falta nada.

Não vou dar leite fora da validade para ele, não deixo. O que a gente consegue de dinheiro, uso para comprar as coisas para ele, o leite, as fraldas.

Sou pintor e eletricista, mas estou desempregado. Quando começou a pandemia, eu estava trabalhando numa firma com 485 funcionários numa obra muito grande, ali na Avenida Presidente Vargas, perto da Avenida Rio Branco. Já tinha quase dois anos de carteira assinada. A obra parou e demitiram todo mundo. Foi aí que a situação piorou.

Está muito difícil conseguir trabalho na minha área. Só se for indicado por alguém. Hoje em dia as pessoas ficam com medo de contratar quem não conhecem. Um colega fez uns cartõezinhos com o meu contato e eu distribuí por aí, mas se você não tiver alguém que diga “pode contratar ele que ele é bom, é de confiança”, fica difícil.

Currículo eu já coloquei em tudo quanto foi empresa, estou esperando para ver se aparece algo há mais de três anos e nada. Pego qualquer coisa que aparecer: faxineiro, pintor, balconista, o negócio é não deixar faltar comida para os meus filhos.

‘Só com a roupa do corpo’

Sou de São Gonçalo e morava no Morro do Bumba, em Niterói. Quando tudo aquilo aconteceu (em 2012, parte do local desabou, matando 54 pessoas e deixando mais de 7 mil desabrigadas), minha casa foi condenada por causa das que eram próximas e caíram. Muita gente foi cadastrada para conseguir um lugar para morar, mas nunca conseguiu. Foi o que aconteceu com a minha família.

Saímos do Bumba só com a roupa do corpo e alguns documentos. Vivemos alguns anos em um abrigo lá no Centro de Niterói, não deixavam faltar nada, recebíamos muita doação de cesta básica, roupa de cama, mas nunca conseguimos uma casa. Há uns anos, falaram que não poderíamos mais viver lá. Foi quando fomos para rua. Viemos para o Rio, e ficamos debaixo do viaduto Paulo de Frontin.

O que eu passei na rua… Já tentaram fazer covardia com meus filhos, meu tio. Não desejo nem para o meu pior inimigo, se eu tivesse. Perdi vários amigos com tuberculose, com Covid. É horrível. Na rua você está à mercê de tudo. Papai do céu que cuidava da minha família.

* Em depoimento a Letícia Lopes

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