Biografia narra trajetória e morte de Domingos Montagner: ‘O luto vai e vem’, diz viúva

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Uma foto enorme de Domingos Montagner decora a sala da casa em que o ator, teatrólogo, palhaço, empresário e produtor teatral viveu com Luciana Lima e seus três filhos, Leo, de 18 anos, Antonio, de 15 e Dante, de 11. O retrato, um presente de imigrantes mexicanos à família no Dia dos Mortos, fica no canto onde também estão o piano com que ele inventava trilhas para seus números circenses, os prêmios que ganhou no teatro, três cartazes de longas dos quais participou e a enorme coleção de livros, discos e filmes com que abastecia o lar e buscava referências a cada novo trabalho.

É ali, onde ainda está esticado o futon que já serviu de cama ao casal, que acontecem as resenhas caseiras dos meninos com os amigos. O espaço é uma das formas com que a mãe mantém fresca na cabeça das crianças a presença e energia festiva do pai, que perdeu a vida em 2016, aos 54 anos, no auge do sucesso, tragado pelo Rio São Francisco, quando nadava com a atriz Camila Pitanga na época em que gravavam a novela “Velho Chico”. O inquérito policial concluiu que o ator sofreu um acidente.

Luciana Lima e os filhos, Antonio, Leo e Dante — Foto: Divulgação

Luciana Lima e os filhos, Antonio, Leo e Dante — Foto: Divulgação

Um outro recurso poderoso, desta vez ao alcance do público, chega para imortalizar a trajetória do ator: a biografia “Domingos Montagner: O espetáculo não para”, do jornalista Oswaldo Carvalho. A obra narra a jornada do protagonista desde a infância, em Tatuapé, até se consagrar como um dos maiores atores brasileiros deste século (leia mais abaixo).

Mas as homenagens que celebram a memória do artista vão muito além de páginas, imagens ou objetos. As festas no dia de seu aniversário e na data de sua morte viraram tradições da família e dos amigos, que procuram ressignificar a data se acolhendo, dividindo as dores e a saudade. Alguns, conta Luciana, já chegam “abrindo a cachaça e acendendo o charuto” para “saravar”; outros, ainda buscam consolar a viúva. O certo é que todo mundo bebe, come, canta e dança, tudo que o “vida”, apelido carinhoso dado pela mulher ao marido (que devolvia com “pretinha”), gostava de fazer.

Luciana e Domingos — Foto: Arquivo pessoal

Luciana e Domingos — Foto: Arquivo pessoal

— A gente tenta trazer a memória dele num lugar alegre e leve, nunca com pesar. Lembrar do privilégio de ter vivido com ele até aquele dia… — diz Luciana, referindo-se à tragédia, que ela chama de “acontecimento”. — É difícil reviver, as emoções vêm fortes, foi muito chocante. O luto não é linear, vai e vem. Volta e meia, levo um dos meninos para bater um papo com a psicóloga. Tem dias que não gosto de falar muito. Foram 17 anos com ele. São muitas situações no dia a dia, tem aquela hora que dá vontade de chorar. Domingos é muito presente na nossa vida. Sempre foi. Mesmo durante as viagens, participava do cotidiano da casa, era brincalhão e firme na educação dos meninos.

Outro costume da família assim que Montagner partiu era ir aos restaurantes que ele gostava e pedir seu prato preferido. Desta forma, Luciana e os meninos foram fazendo a transição da presença física para, digamos, a imaterial. Apesar de que, observa Luciana, os filhos trazem muito do pai nos traços físicos. Tem um que é igualzinho de corpo, no jeito de falar e de se comportar, repara ela.

Um dos momentos em que mais sente mais falta do companheiro é quando ela tem dúvidas diante de decisões que precisam ser tomadas em relação à educação dos filhos. Luciana conta que os mais velhos têm mais memória da relação com o pai. Assim, fica mais fácil recorrer a referências. Já com o pequeno, é mais complicado trazer os valores e prioridades que o pai tinha como norte. Nessas horas, ela se recolhe e mentaliza. Pede que ele lhe mande sinais. O que, garante, acontece.

— Vem em forma de intuição, de mensagens em algo que leio ou quando converso com alguém e já me vem a resposta… É nesse lugar sutil que ele me acompanha. Isso aconteceu muito durante a montagem do “Pagliacci” (o primeiro espetáculo que a companhia La Mínima, fundada por Montagner, montou após sua morte). — Antes de dormir, eu pedia que ele me falasse como fazer. Não lembrava do sonho, mas no dia seguinte, sabia como agir. Era algo preciso, insights mesmo.

Parceiro de picadeiro de Montagner por 30 anos, o ator e palhaço Fernando Sampaio, que criou com o amigo a La Mínima e o Circo Zanni, é chamado por Luciana de “primeira viúva” (“se bobear, Domingos passou mais tempo da vida com o Fernando do que comigo”). Ele se emociona ao lembrar do momento em que recebeu a notícia do acidente.

— A gente estava na estrada com a La Mínima, e um amigo me ligou perguntando: “Que história é essa do Duma?” (apelido dado pelos amigos). Eu não sabia nada e comecei a ver nos sites. Tentei falar com pessoas até que consegui com um assistente do Luiz Fernando (Carvalho, diretor de “Velho Chico”). Eles contaram que havia uma equipe de busca. Ficamos muito mexidos e voltamos na hora. Foi um momento muro duro (chora). Voltamos para a nossa sede e notícia chegou à noite. Foi uma interrupção brutal, quando tudo estava acontecendo para ele…

Domingos Montagner: palhaço por mais de 30 anos  — Foto: Divulgação / La Mínima

Domingos Montagner: palhaço por mais de 30 anos — Foto: Divulgação / La Mínima

Camila Pitanga, testemunha da morte do amigo e companheiro de cena, não consegue nem falar sobre o momento em que estendeu a mão em direção a ele, então dentro d’água, e disse: “Domingos, vem pra cá, aqui em cima tá tranquilo”. A atriz prefere ressaltar a lembrança viva que tem na memória.

— Como um cometa, Domingos passou pela terra. Eu tive a sorte de ver esse astro em seu esplendor.

Fernando segue a vida guardando na “na alma” os incontáveis almoços, viagens e ensaios.

— Ele era um treinador incansável, adorava ensaiar, tinha uma energia para ensinar e fazer bem. Era muito forte no físico e tinha uma coisa muito firme. Tinha habilidades diversas nas artes: escrevia, desenhava, atuava, era um gênio. Fora que era um puta de um amigo e parceiro, uma dupla dos sonhos A gente lutou por tudo que queríamos fazer. Não ficou nenhuma frustração. Tudo que imaginamos fazer, fizemos — diz. — Ele deixa muita coisa com a gente do grupo, sobre ética na forma com quem criava, na força dele que a gente leva adiante. A presença dele está impregnada na nossa alma.

O espetáculo não para

 

Capa do livro 'O espetáculo não para' — Foto: Reprodução

Capa do livro ‘O espetáculo não para’ — Foto: Reprodução

Lançada na semana passada pela editora Máquina de Livros, a biografia “Domingos Montagner — O espetáculo não para” reúne vasta pesquisa documental, que inclui mais de 150 fotos cedidas por Luciana Lima e o cunhado Francisco Montagner, ilustrações feitas pelo próprio protagonista e entrevistas com mais 80 pessoas — entre elas, Antonio Fagundes, Camila Pitanga, Ingrid Guimarães, Lilia Cabral e Debora Bloch. Traz também um texto carinhoso de Luiz Gustavo sobre a versão “palhaço” do protagonista e orelha assinada pela atriz e amiga Denise Fraga.

Ilustração feita por Domingos Montagner está em sua biografia — Foto: Reprodução

Ilustração feita por Domingos Montagner está em sua biografia — Foto: Reprodução

Mais do que a carreira na TV em si, o foco do autor recai no caminho que o ator trilhou antes, durante uma trajetória de quase 30 anos no teatro e no circo, ofício no qual Montagner acabou se tornando um dos principais modernizadores nos anos 1990. Ficamos sabendo também que ele foi atendente de bar, assistente de almoxarifado, jogador de handebol, professor de educação física, cenógrafo, trapezista…

— Domingos era um menino de classe média que nunca teve artista na família e se encantou pelo circo vendo o circo. Sua trajetória parece uma sinopse de filme: um palhaço trapezista que vira galã de novelas prestes a completar 50 anos. É uma história que pode inspirar muita gente — acredita Carvalho.

A publicação mostra ainda como ele entrou tardiamente na TV, aos 46 anos, e rapidamente virou um fenômeno, disputado por diretores e autores. Antes de morrer, era o principal galã maduro da TV. A biografia revela, inclusive, que ele estava cansado de viver esse personagem. Queria um papel cômico, mas os convites para viver o galã não paravam de chegar.

Mas o que está estampado nas páginas é uma vida interessante que dá à biografia tons de romance, com direito a reviravoltas. O momento mais marcante, no entanto, é o que reconstrói o dia da morte do ator.

Durante essa passagem, chama atenção uma parte específica. Ela revela que a pajelança feita em cena por indígenas depois de Santo, personagem do ator em “Velho Chico”, ser alvejado por um tiro e resgatado do Rio São Francisco, foi totalmente real. Eles não tinham em sua cultura o conceito de dramaturgia, nem de encenação, “de forma que os rituais de ressuscitação foram realizados à vera”, revela o livro, que levou três anos para ficar pronto.

Pouco depois da morte do artista, Carvalho foi instigado pelas curiosidades que vieram à tona sobre a vida pregressa do galã e resolveu procurar a família.

— Ouvi dizer que ele era palhaço e falei “caramba, esse cara tem uma história interessante”. Era um passado que todo mundo queria saber. Comecei a ler tudo que tinha sobre ele e sobre o circo, tanto que o livro também tem essa missão de deixar registrado um pouco da história do circo — conta o autor.

Luciana admite que, a princípio, não ficou muito confortável com a ideia do livro.

— De cara, pensei “já vai começar?”. Porque o acontecimento gerou comoção enorme e muita curiosidade em saber quem era aquela pessoa que tinha deixado tanta gente órfã. Fiquei reticente por ser uma biografia, teria que adentrar na intimidade e Domingos sempre foi muito discreto na vida privada. Dei um chá de cadeira. Mas foram delicados e sensíveis e respeitaram o meu tempo — relata ela.

Depois de várias conversas e de ver o capricho com que o projeto visual estava sendo tratado, ela foi baixando a guarda e formou uma trinca com Fernando e o cunhado para dividir a responsabilidade e acompanhar o processo. A obra chegou a voltar duas vezes por causa das considerações do trio. Mas saiu e tudo que tem de vida pessoal nela contribui com a narrativa focada na carreira artística.

— A vida de um artista reluz contando sua história. Será muito precioso conhecer seus primeiros passos, sua trajetória de herói e palhaço de circo, sua grandeza de artista e humanidade — encerra Camila Pitanga.

Fonte: O GLobo