“Quando cheguei, a gente só podia trabalhar no trânsito, as mulheres lutaram muito para mudar isso”.

Neidy Nunes Barbosa Centurião ingressou na Polícia Militar em 1994, depois de passar no concurso público de 1993 para oficial da instituição – Foto CE.

Neidy Nunes Barbosa Centurião tem feito história na Polícia Militar de Mato Grosso do Sul (PMMS). Depois de ter sido a primeira mulher a se tornar coronel da corporação, em 2020, a militar assumiu o comando da PMMS no ano passado, em virtude do afastamento do comandante-geral da instituição, coronel Renato dos Anjos Garnes, que sofreu um acidente. A gestão foi de cerca de 60 dias, mas foi a primeira vez que uma mulher assumiu o posto no Estado.

Entrevistada desta semana, Neidy conta como decidiu seguir a carreira militar, quando ainda poucas mulheres seguiam o mesmo caminho na corporação. A militar revela ainda que entrou com 17 anos, logo após passar em um concurso, e precisou sair de casa antes de atingir a maioridade, a fim de fazer o curso de oficial da Polícia Militar, que na época só era feito em São Paulo. Confira a seguir.

Por que a senhora decidiu entrar para a Polícia Militar? Em que ano foi isso?

Eu estava terminando o terceiro ano do Colegial na época.

O pai de uma amiga, que era tenente do Exército, chegou e falou: “Olha, está aberto o concurso da PM para oficial. Você não gostaria de fazer? É um concurso, é legal”. “Morro de medo da polícia, como é que eu vou ser policial? Como é que eu vou fazer um negócio desse?”, respondi.

“Não menina, vai, é porque você não conhece, você vai aprender o que a polícia faz, vai aprender o trabalho, vai aprender as técnicas, a parte operacional e tal, fica tranquila. Sem contar que eles vão te formar em um nível superior. Quando você voltar de lá, já tem um trabalho, já tem uma garantia, e aí você faz o que você quiser”, ele me disse. Então, eu entrei para a polícia meio que buscando um emprego, uma estabilidade, com 17 anos. Isso foi em fevereiro de 1994.

O concurso foi no ano anterior, e eu passei. Assumi em 1994, fui para São Paulo, fiz academia lá, mais quatro anos [de estudo], até porque não tínhamos ainda academia por aqui [em MS]. Voltei aspirante, trabalhei no trânsito, trabalhei em Corumbá e em Dourados.

Sou natural de Coxim, nasci ribeirinha lá, mas aos sete anos fui morar com os meus pais em Costa Rica. A gente foi lidar com a pecuária leiteira. E sou a única [militar] na família, tanto por parte de pai quanto de mãe. As únicas coisas de militarismo que eu ouvia falar era de quando meu pai servia no Exército, só isso. Eu ficava encantada com aquilo, com a maneabilidade, com a sobrevivência e com a superação.

Seu pai deu apoio quando a senhora decidiu entrar para a PM?

Ele achou estranho, porque eu tinha só 17 anos, ia embora para São Paulo com aquela idade. Mas por ser uma carreira militar, por ser em um colégio militar e por eu já conhecer um pouco do que era o militarismo do Exército, [ele] sabia que tinha uma certa segurança. Aí fui para São Paulo, me apaixonei pela PM perdidamente. Entrei aqui [na PMMS] como um trampolim e estou até hoje.

A senhora faz parte de uma corporação formada em sua maioria por homens. Como foi no começo da sua carreira militar?

Eu tenho como característica uma resiliência muito grande nas coisas, e isso acho que meu pai me ensinou desde berço, de que tudo o que eu quisesse teria que lutar muito para conseguir, que eu não ia conseguir de graça. Quando me apaixonei pela PM,

não existia a possibilidade de fazer outra coisa. Então, eu precisava arrumar estratégias e métodos de como me aproximar desse público, que era um público masculino.

Minha estratégia foi o cuidar, porque era algo que eles [homens] sentiam falta na instituição, mas sem deixar de ser operacional, de ir para as operações, de estar com eles.

Mas eu estava sempre olhando e cuidando da parte da relação pessoal, de incentivá-los, de trabalhar [junto], até [no sentido] de orientação.

Você acha que isso ajudou a criar uma relação de respeito?

Acredito que sim, até porque em todas as falas, inclusive as que eu ouço deles, têm esse lado carinhoso que eles têm comigo, e eu sinto o carinho deles comigo dessa forma. Tem o respeito, sim, tem o respeito pela hierarquia, mas também de irmandade, de parceira.

Recorda-se de algum episódio em que tenha sentindo tratamento diferente por ser mulher, tanto na corporação quanto nas pessoas na rua?

Onde eu enfrentava mais dificuldade não era com o público interno da instituição, não, com os policiais, mas na atuação fora da corporação, quando a gente estava em operação. Éramos poucas mulheres ali, de fato, fazendo as abordagens. E via de regra, se você está em uma abordagem [policial], em um local de conflito [com algum suspeito], já existe toda aquela parte do alcoolismo envolvido, isto é, do cara estar alterado. Então, ele [o sujeito abordado], claro, não queria obedecer uma “baixinha”.

São vários pontos que posso destacar que existiam por a gente ser mulher. Vai ser homenageada? É porque é mulher, porque precisa fazer política. Por que é subcomandante? É que o governo precisa fazer política. “Ter uma mulher faz bem para a política”, coisas do tipo. Mas por um outro lado, a gente vai com o tempo conquistando espaço e prova sem briga. No meu caso, até porque a minha escolha foi a de lutar sem briga, por ter demonstrado competência de trabalho.

É claro que é uma devoção, uma dedicação muito grande, mas nada que fosse escrachado que é porque você é mulher. Você consegue sentir, mas sem conseguir provar, percebe nas entrelinhas o que está acontecendo. No meu caso, eu optei por também estar nas entrelinhas fazendo demonstrações e provando de outras formas com muito cuidado.

Eu tenho muito orgulho de dizer que as minhas promoções foram por merecimento. Tenho todas as medalhas da Polícia Militar conquistadas e me orgulho de tê-las e de poder ostentá-las no meu peito.

Como foi a evolução da carreira da senhora?

Quando cheguei aqui, a gente [mulher] só podia trabalhar no trânsito. Podia trabalhar no trânsito ou no administrativo. Sempre tive o desejo de estar na rua, só que eu detestava o trânsito.

Logo depois disso, as políticas internas foram mudando. As mulheres lutaram muito por isso. As que estavam na minha frente, elas lutaram muito. Após um ano e pouquinho no trânsito, aí fui para a Cavalaria, que estava sendo montada aqui em Campo Grande, daí fomos ajudar a montar a Cavalaria de Dourados também, depois. E aí voltei de Dourados.

Trabalhei no 1º Batalhão, na área central de Campo Grande, fiquei lá por um bom período. Depois voltei para o trânsito a convite, fiquei uns dois anos lá, e aí fui ser subcomandante de Corumbá, em 2005. Em 2008, voltei de Corumbá já como capitã, vim trabalhar no gabinete de assistente do comandante-geral. O chefe na época era o coronel David,

e aí vim trabalhar com ele.

Fiquei aqui até 2011, trabalhei na PM, daí eu fui trabalhar como subcomandante em 2012, eu fui subcomandante do Batalhão Rodoviário.

No Batalhão Rodoviário, fiquei por uns dois anos, quase três anos, e fui convidada para comandar a Cavalaria. Então voltei para a Cavalaria e fiquei quatro anos. E aí fui para a Policlínica, fiquei dois anos, tudo em Campo Grande.

E aí fui para a Comunicação, fiquei lá um ano e pouquinho. Depois vim para ser assistente do gabinete do comandante-geral como tenente-coronel, até fui promovida a coronel, em 2020, e, no ano passado, vim assumir o subcomando da PM.

Como à senhora vê as tentativas para trazer igualdade de gênero à sociedade como um todo, não só na polícia, mas nas empresas, e as políticas de empoderamento feminino?

Eu acredito, como sou mais velhinha, que houve muitas mudanças. Houve, sim, bastante empoderamento feminino. Nós temos vários casos, e no Estado isso é garantido, nos cargos do Estado a igualdade é plena. Agora, na sociedade civil, no emprego civil, ainda existem dificuldades.

Veja bem, é muito mais simples você controlar e, assertivamente, colocar uma política que possa funcionar dentro do Estado, dentro das instituições, onde têm regramentos, como é o caso da Polícia Militar, regramento firmes e que ambos os sexos vão ter de cumprir, vão ser cobrados. Então, não vai ter como ter a desigualdade ou a diferença.

Sempre temos como melhorar. Sempre temos o que melhorar em todos os aspectos, tanto de legislação quanto de fazimento. Nós temos, por exemplo, institucionalmente, ao longo dos anos, sempre dado oportunidades para mulheres comandarem a instituição.

Nós temos, em Campo Grande, a comandante do 1º Batalhão, que é o mais antigo do Estado, a tenente-coronel Kátia. E nas Moreninhas nós temos outra mulher comandando também, que é uma companhia. Maracaju é uma mulher comandando, Fátima do Sul é uma mulher comandando. De forma que isso tem se tornado normal dentro da instituição, ao passo que antes não havia essa leitura.

E as meninas lutam todos os dias para provar, para garantir, para conseguir subir mesmo na carreira.

Na sua visão, o que ainda falta evoluir para que as mulheres tenham, de fato, igualdade salarial e de tratamento?

Na polícia, a igualdade salarial é ok, já é uma realidade. A gente compete com os homens com objetividade.

Eu, por exemplo, fui promovida na frente de alguns colegas de turma. Então, isso também é normal dentro da instituição, mas, via de regra, são obedecidos todos os ditames legais aqui dentro. A gente tem de fazer a nossa parte também enquanto mulheres, nada vai ser de graça.

Agora, na sociedade, é uma mudança social, uma mudança de comportamento, de pensamento, de filosofia, e isso ainda, eu acredito, pelo que a gente tem visto, vai demorar um pouco para ser plena, como a gente vê em outros países. É muito difícil dizer que também só o Estado, só nós que lutamos é que vamos conseguir fazer com que isso [a mudança] aconteça.

A senhora foi comandante-geral da PM em MS, a primeira mulher a chefiar a corporação. Como a senhora se sentiu com esse feito? Espera que um dia outra mulher possa comandar a polícia?

Com certeza [outras mulheres devem assumir], nós temos inúmeras mulheres com grande competência dentro da instituição.

Vai acontecer brevemente, logo, logo teremos grandes conquistas dentro da instituição. Nós temos tenentes-coronéis excelentes, muito capacitadas e se tornarão coronéis em um período de três anos.

No meu caso, foi uma conquista muito grande, de verdade. Eu me preparei, mas eu não esperava que fosse acontecer. Me surpreendeu porque eu era subcomandante, é claro que eu fui comandante por um período, em decorrência do afastamento, mas continuei, estive lá, firme e forte.

Nas instituições, e principalmente na Polícia Militar, onde a gente comanda, ou seja, manda junto, nós temos um grupo de coronéis muito colaborativo, um grupo de coronéis muito parceiros, temos 30 anos juntos. E nesse momento difícil de comando, para qualquer um, o trabalho em equipe é fundamental. A conversa entre si e as decisões tomadas em conjunto fazem com que a gente erre menos, que a gente dê melhor encaminhamento para a instituição.

Então, foi uma oportunidade maravilhosa que eu sinceramente só tenho a agradecer a todos que colaboraram com isso, independentemente de ser soldado, coronel ou sargento, cada um no seu caminho.

No ano passado a gente tirou esses números excelentes para a população. Nós batemos os números de 2022, que eram números que a gente, por serem da época de pandemia, não imaginava que pudesse conseguir. A gente foi lá, conseguiu e deu conta, por meio de várias nuances, várias estratégias e muito trabalho.

Como à senhora vê o sempre grande número de mulheres que sofre violência doméstica? Que orientações à senhora dá para quem estiver nesta situação?

Eu oriento que continue a denunciar. Nós temos, estatisticamente, que as mulheres que denunciam até podem ser vítimas novamente, mas são pouquíssimas as que morrem.

Para as que não denunciam e continuam no anonimato, que continuam submissas àquela violência, as agressões só tendem a crescer.

Então, que elas tenham coragem e denunciem. Não temos de ter vergonha dos números de denúncia. No ano passado, aumentou o número de denúncias, em consequência, diminuiu em 22% o número de feminicídios.

Perfil

Neidy Nunes Barbosa Centurião

Ingressou na Polícia Militar em 1994, depois de passar no concurso público de 1993 para oficial da instituição. Comandou

a Companhia de Trânsito, o Policiamento Montado, o 1° Batalhão da Capital, a Comunicação Social e a Cavalaria da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul (PMMS), o Batalhão Rodoviário e o Subcomando da PMMS em Corumbá.

 

Fonte CE.

Redação Gdsnews.

 

 

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